As palavras escritas
frequentemente escoiceiam as verdades oficiais, como cavalos alados.
Mordem os torturadores, atacam os corruptos e os
burocratas, conduzidas pela ética de quem as organiza.
Além disso, nos
fazem sonhar; abrem portas, janelas, cofres alçapões e caixas de Pandora;
permitem que as flores nasçam em pleno asfalto; transformam o naufrágio da
velhice num tempo de ventura, quando restam apenas “o homem e a alma”. As
palavras escritas nos levam à Dinamarca ou nos transportam sobre as águas
geladas do Báltico; percorrem conosco a veredas do Central Park, cobertas pelas
folhas de um outono tardio; hospedam-nos num
maravilhoso castelo do século 14, em West Sussex, junto à um cemitério;
revelam nos os mistérios dos maias e dos tehotihuacanos, dos toltecas e dos
babilônios, dos minoicos e dos astecas; descem suavemene como a neve sobre os
vivos e os mortos; desvendam os segredos
do passado- “ este quimérico museu de formas inconstantes”- e antecipam as
vertigens do futuro; iluminam Paris e Jerusalém; despertam paixões, ressuscitam
os mortos e desafiam os poderosos. Elas são mágicas e possuem poderes
ilimitados, orientadas pela estética de quem as organiza.
Há pessoas que
sonham - e vão buscar nas palavras o meio de manifestar seus sonhos. Num
delicado trabalho de ourivesaria, elas selecionam frases, fazem o polimento das
concordâncias, montam parágrafos, para provocar emoções e despertar a
imaginação dos seus leitores. Esses misteriosos seres, solitários e eternamente
insatisfeitos, são chamados escritores . Este ano, eles estarão presentes,
pessoalmente ou por intermédio dos seus textos, em dois grandes encontros, no
Brasil: a Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, e o salão Internacional do Livro,
em São Paulo.
Os escritores
geralmente não sabem administrar bens nem lidar com dinheiro, não entendem a
política cambial nem de juros acumulados. Às vezes, sofrem de insônia, pressão
alta e enxaqueca. Vivem acossados pela insegurança- será que meu livro vai
fazer sucesso? Ficará encalhado? Você gostou do texto? Temem sempre os
críticos, a rejeição dos leitores, e em certos países sombrios, a espada cega e
implacável da censura. Mas essas criaturas de aparência frágil tornam a vida
muito mais intensa, fazem das palavras um instrumento de magia, distribuem
sonhos e emoções.
Os regimes
autoritários sempre odeiam quem escreve. Na América Latina , por exemplo,
poetas, romancistas, críticos e jornalistas foram perseguidos, durante os
chamados “anos de chumbo”. Nos países socialistas também, porque as “ditaduras
do proletariado” temiam os escritores e o poder desarmado de suas palavras. Até
hoje, isso acontece em Cuba, no Marrocos, na Líbia, no Iraque, no Afeganistão,
na China e em outras nações que ainda não se encontraram com a democracia.
Muitas vezes
os escritores acabam na prisão. Mas a cadeia não é o único mal que se abate
sobre eles. Há processos variados de intimidação, ameaças, isolamento,
desemprego. Há também a censura, que os brasileiros já conheceram em diversos
períodos da vida nacional. Durante a ditadura de Getúlio Vargas- o período
conhecido como “Estado Novo”- tivemos um inesquecível exemplo da ação dos
censores. Depois do golpe militar de 1964, também fomos obrigados a conviver
com a censura, que se abateu sobre o País com uma praga, brandindo sua
ignorância e sua truculência de forma implacável.
Apesar de
todos esses problemas, apesar de tantos obstáculos, os escritores escrevem. São
teimosos, quase obstinados. Escrevem sempre, mesmo na penumbra. Até na
escuridão, escrevem e nos iluminam. Com o seu ofício, eles nos ensinam, nos
enternecem, nos emocionam, nos humanizam, nos aprimoram. E nos fazem sonhar.
Num tempo
já quase esquecido e tornado mítico, William Sheakespeare escreveu “ somos
feitos da mesma matéria que são feitos os sonhos.” O sonho, portanto, é o nosso
ponto de partida- e o nosso ponto de chegada. Talvez até nos acompanhe na
viagem derradeira ao outro lado do tempo. “Morrer, dormir, quem sabe,
sonhar...”, sugeriu o próprio Shakeaspeare, um escritor que, mesmo morto, ainda
nos oferece sonhos fantásticos, com seus textos imortais.
RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, foi secretário
municipal de cultura de São Paulo
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