PAULA MAGESTE
Em novembro de 1994, o então estudante do 2º ano de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Braga tornou-se invisível. 'Fiquei atordoado, não conseguia sentir o gosto da comida, perdi meu centro', lembra. Nem loucura nem ficção científica. Braga atingiu a invisibilidade ao vestir um uniforme de gari. Como parte de um estágio solicitado por uma das disciplinas que cursava, ele resolveu acompanhar, de duas a três vezes por semana, a rotina dos garis da Cidade Universitária - pegando no pesado junto com eles. Ao vestir calça, camisa e boné como seus colegas de 'varreção', esperava causar espanto, curiosidade ou até mesmo indignação em seus amigos, professores, companheiros de futebol e conhecidos da USP. No entanto, não conseguiu nem mesmo receber um bom-dia. 'Atravessei o andar térreo da Psicologia de ponta a ponta. Estava atento, buscava a expressão de surpresa em alguém. Mas nada acontecia', conta. 'Deixei de esperar perguntas intrigadas, mas ainda seria capaz de responder a algum cumprimento. Nada.' Os professores com quem havia conversado pela manhã passaram por ele e nem perceberam sua presença. Não é que tenha sido ignorado, menosprezado, rejeitado. Pior: nem foi visto. Era como não estar lá; como 'não ser'. O mal-estar experimentado por Braga jamais o abandonou. Ele passou os nove anos seguintes trabalhando com os garis da USP e transformou em tese de mestrado o indigesto tema da 'invisibilidade pública' - o desaparecimento de um homem no meio de outros homens. Concluída em 2002, a tese agora vira livro lançado pela editora Globo.
Ironicamente, o psicólogo ganhou visibilidade falando da invisibilidade, que, segundo ele, está relacionada à divisão social do trabalho e afeta até mesmo quem não é totalmente excluído economicamente. Ela seria uma espécie de cegueira psicossocial, que elimina do campo de visão da maioria da população aqueles que são condenados a exercer uma atividade subalterna, desqualificada, desumanizante e degradante o dia inteiro, às vezes uma vida inteira. É uma situação diferente da contada pelo escritor americano Ralph Ellison, que nos anos 50 lançou seu romance O Homem Invisível. Ellison, negro, contava a história de um descendente de escravos que ao percorrer os Estados Unidos descobriu apenas que, por ser negro, era ignorado - segundo ele, algo muito pior que ser confrontado ou desprezado. Braga mostra que, independentemente do preconceito racial, o preconceito social também é tão incrível que leva a simplesmente apagar pessoas do campo de visão. 'Nem na Suécia uma criança é incentivada pelos pais a ser gari, faxineiro ou coveiro', provoca. 'Não tem a ver com salário, mas com a simbologia.' Todo o mundo se sente invisível em algum momento da vida - numa festa de gente de outra tribo, no emprego novo em que não se conhece ninguém. Mas essas são outras invisibilidades, circunstanciais, e portanto passageiras, reversíveis. O estudo de Braga é sobre uma invisibilidade tão automatizada na sociedade que muitas vezes nem mesmo o ser invisível se dá conta de sua degradante situação. 'Se ele percebe, carece de armas para o combate. Depois de ser ignorado a vida inteira ou, no máximo, maltratado, ninguém anda de cabeça erguida.'
De fato, na maioria das vezes, o gari que limpa nossa cidade só é notado quando falta ao serviço. O ascensorista é tratado como uma máquina que funciona por comando de voz, sem direito a 'por favor' nem 'obrigado'. A empregada doméstica põe o avental, alimenta a família e deixa a casa organizada anos a fio, mas os patrões mal sabem seu sobrenome, se tem filhos, se está com algum problema. Os únicos cidadãos que vestem uniforme para servir aos outros e ganham visibilidade e reconhecimento são os que estão em situação de poder sobre o interlocutor - médicos, enfermeiros, policiais. 'Algumas profissões estão num nível de rebaixamento absoluto', reforça Braga. 'As pessoas estão habituadas a passar pelos garis como quem passa por objetos', assinala. Nilce de Paula, mineiro de 61 anos, confirma. Desde que chegou a São Paulo, aos 18 anos, trabalhou em bar, restaurante, fez salgadinhos para vender, foi ascensorista - de terno e gravata, orgulha-se - e carregou contêineres de veneno. Já tinha experimentado o preconceito racial, mas a indiferença mesmo só conheceu quando virou gari. 'Às vezes estou trabalhando na avenida e passa uma pessoa. Mesmo que ela não me cumprimente, eu cumprimento, porque um bom-dia não custa nada', afirma. 'O pior é quando os carros quase passam por cima da gente, sem nem tentar desviar. A gente tem de trabalhar de frente para a avenida e se cuidar.' A invisibilidade pública vem sempre na companhia da humilhação social, o sofrimento pelo rebaixamento político, social e psicológico experimentado continuamente por cidadãos de classes D e E. O conceito é recente e foi cunhado por José Moura Gonçalves Filho, orientador de Braga. Afeta o raciocínio, a visão e o afeto de quem é discriminado. 'O invisível não tem voz, seu discurso não é levado em conta, sua opinião sobre o mundo não importa. Ele aparece apenas como ferramenta', diz o psicólogo. Funcionária de uma empresa terceirizada de limpeza, a baiana Sônia Aragão, de 34 anos, veio para São Paulo em 1996, depois de ter passado pela lavoura, por restaurantes e casas de família. Ter de usar uniforme foi um choque: 'Tem gente que passa reto e faz de conta que não me vê. Eu mesma me sinto estranha com esta roupa, porque parece que não sou eu. Quando não estou de uniforme, pelo menos as pessoas me olham, mesmo que não falem comigo', diz.
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