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domingo

A era da mediocridade. Parte I.



Se eu me beliscasse toda vez que me sentisse um estranho no planeta certamente acabaria confundido com um extraterrestre, ou terráqueo de repelente moléstia de pele. A cor azul-arroxeada e as feições inchadas, resultado dos beliscões, seriam, no plano corporal, o equivalente do que sinto por dentro quando avalio, globalmente, o que ocorre em áreas “nobres”, artísticas, políticas e às vezes jurídicas. E garanto que boa parte dos leitores mais exigentes e sequiosos de informação sente, lendo os jornais ou vendo televisão, a mesma sensação diária de estranheza. — “Será que estou sonhando?, que li e ouvi direito o que está na mídia, mesmo a mais respeitável?”



A decadência paira no ar, como uma névoa. Por vezes brilhantemente colorida mas de odor suspeito, a sugerir que algumas ratazanas culturais não foram enterradas a tempo. Provavelmente, parte dos coveiros das asneiras está dopada, embriagada com excesso de fatos e interesses comerciais entrando aos trambolhões na caixa craniana, insuficientemente espaçosa para filtrar e “separar o joio do trigo”. Não digo nada se, logo, logo, as lojas de produtos naturais estarão — corrigindo a referida expressão —, vendendo joio em cápsulas, argumentando que ele é mais nutritivo e anti-cancerígeno que o trigo, esse vulgar construtor de obesidades?

Generalidades gratuitas? Crise de depressão sem fundamento objetivo? Vejamos.

Escolhendo ao acaso, examinemos, inicialmente, a mediocridade que ocorre no cinema, chamado, por tradição, de “sétima arte”, mas sem dúvida a primeira delas, em termos econômicos e de influência social. Notadamente o cinema norte-americano.

É impressionante saber que os “fundadores da sétima arte — os irmãos Lumiére, Auguste e Louis —, supunham que o “cinematógrafo” — assim chamado — era apenas um instrumento científico, sem qualquer futuro comercial, a demonstrar a imprevisibilidade de todos os efeitos do que acontece no mundo. Um modo de olhar, um gesto brusco ou amigo, ou um tom de voz — no momento certo, ou errado — podem despertar sentimentos e juízos capazes de alterar destinos de pessoas e até de países. Isso porque existe uma coisa perigosa, traiçoeira e até involuntária chamada “interpretação”. A ciência jurídica vem tentando criar regras a respeito da hermenêutica das leis e contratos mas nunca se pode dizer que o valor de tais regras é absoluto porque o simples lapso no uso de uma palavra altera o resultado. Se a palavra saiu por engano, não facilmente demonstrável, a interpretação também estará enganada. E paremos por aqui porque as generalizações são mais enganosas que as situações concretas.

Gosto de filmes de ação, que geralmente são americanos. Ou melhor, hoje gosto menos porque estão cada vez mais decadentes, por demais interessados na bilheteria, sem preocupação com qualidade. Tremendamente repetitivos nos enredos medíocres, exageradamente sanguinolentos e recheados de chavões. Se, por exemplo, o policial amigo do herói é maduro, bonzinho e comete a imprudência de dizer que vai se aposentar daqui a alguns dias, é garantido que uma bala do marginal o matará antes do filme acabar. Adeus aposentadoria! Culpa dele! Quem mandou falar que ia se aposentar?! O medíocre roteirista, mesmo não tendo irmão criminoso na cadeia — o que justificaria parcialmente o rancor —parece pensar que nenhum policial merece a recompensa de uma velhice tranqüila.

Outro chavão é o tratamento grosseiro que o policial heróico dá, sem qualquer justificativa, a seu novo companheiro de trabalho e que acaba se transformando em amizade profunda porque o novato salva a sua vida.

Nas perseguições envolvendo carros em grande velocidade, o diretor, violando as mais elementares leis da física — e convicto da estupidez dos espectadores —, acha imprescindível que um automóvel, após colidir com outro, levante vôo e, qual uma patinadora do gelo, rodopie no ar antes de cair, como se isso fosse possível sem a presença de uma rampa (meio torta) de lançamento escondida atrás de um veículo estacionado. Isso sem falar no veículo que cai no abismo e explode antes de atingir o solo. O técnico de efeitos especiais, bem distante, apertou antes do tempo, no controle remoto, o botão de explosão. — “Repetir a cena? De jeito nenhum! A platéia nem vai notar! Além disso, a gasolina não está barata!”. Não é de estranhar, portanto, que os EUA tenha que endurecer sua política externa no Oriente Médio, com isso diminuindo sua dependência de petróleo, porque metade do óleo importado é queimado em filmes de ação. Estou exagerando, claro, mas convém esclarecer porque a decadência geral inclui a má interpretação de tudo que se lê e ouve.

Compreende-se que, em filmes policiais, seria difícil evitar algumas cenas violentas regadas com groselha ou vinho tinto. Onde entra a faca, ou a bala, sai o sangue. Isso é inevitável, normal e próprio do conflito entre ordem e criminalidade. O crime envolvendo sangue é um atalho percorrido por um indivíduo meio desesperado — ou, mais raramente, frio — que não tem paciência nem disciplina para satisfazer suas necessidades, justificáveis ou não, pelas cansativas vias tradicionais. Não tem paciência nem mesmo para um bom planejamento do crime. A sofreguidão é sua desgraça; dele e da vítima. Quando esta reage, não há caminho de volta. Daí o sangue. Uma realidade da vida em qualquer sociedade.

A decadência atual desse tipo de filmes, porém, revela-se na insistência do sadismo repetido por longos minutos, a vítima gritando. Bandidos de filme já não se contentam em atirar nas vítimas. Submetem-nas a cenas de choques elétricos prolongados. Quebram mãos e pés com marteladas ou tacos de beisebol . Arrancam unhas com alicate. A tortura insistente, em filmes, parece atender a uma suposta “exigência de sadismo” do mercado. Basta ver o sucesso da série de “Sexta-feira, 13”, em que um maluco forte e “imorrível”, com máscara branca furada — ele nunca corre mas sempre alcança as vítimas que correm —, sente prazer em cortar cabeças e outras partes, gratuitamente.

Esse cultivo deliberado da barbárie é jogado para consumo em massa, sendo comprado em DVD, visto em cinema e televisão e até mesmo imitado por marginais imensamente ignorantes que, ou já nasceram com baixíssimo nível de compaixão, ou sofreram muitas bordoadas e privações na vida e estão dispostos a “ir à forra!”. Com arma na mão, em grupos, invadindo lares, não se contentam em exigir dinheiro das vítimas. A graça está em aterrorizar. Acham “bacana”, “cool”, fazer como viram nos filmes, ameaçando matar e deliciando-se com o terror estampado nos olhos dos “burgueses” indefesos. E o clímax da sensação de poderio é obtido quando matam friamente, com tiro na cabeça, aquela vítima que já entregou tudo o que era possível entregar. O chique aristocrático da eliminação, antes do marginal ir embora, está justamente no detalhe de matar por capricho. Afinal, matar por necessidade seria muito, “terra-a-terra”, esperável. Não acredito que matam apenas para não serem reconhecidos porque às vezes o assaltante está mascarado ou com capacete e, mesmo assim, mata.

Para “enriquecer” o gênero policial, é cada vez maior a tendência da indústria cinematográfica de aceitar enredos em que o criminoso é um “serial killer”, porque já seria “acanhado demais” matar um só: — “Se tudo evolui para a produção em massa, por que o cinema deveria ser uma exceção?”

Mesmo em detalhes secundários, a imitação é a regra. Virou moda o personagem vomitar ao ver o estado do cadáver desfigurado. Mocinhas e camareiras de hotel, tempos atrás, apenas gritavam, longa e histericamente, quando se deparavam com um morto, mesmo deitado no chão em posição digna. Bastava um leve ferimento e o fato de estar morto — reação que já era uma falcatrua da realidade, porque na vida real as mulheres não reagem desse modo, berrando longa e agudamente. Hoje o diretor manda que elas vomitem. De preferência, com a cara enfiada no vaso sanitário, exigência de realismo. Depois pode desmaiar. E por aí vai.

O infantilismo intelectual também vem sendo intensamente incentivado com filmes que compensam a falta de coerência e senso crítico com um excesso de brilhantes efeitos especiais. Brilhantes pelo lado técnico mas estúpidos e infantis pelo lado do enredo. Filmes que deveriam ser assistidos apenas por crianças — por exemplo “Godzillas”, um monstro sem pais, compostos de milhares de toneladas de proteína ( cerca de 30 filmes) — são vistos com prazer por marmanjos desacompanhados de filhos ou netos. Mesmo o sucesso de bilheteria “Avatar”, premiadíssimo, é um insulto à inteligência, embora bem intencionado na doutrinação ecológica e da paz entre os homens. Para mim, o diretor James Cameron decaiu em sua biografia, apesar da premiação. Espero que se reabilite, porque é um diretor de grande talento e preocupação com o detalhe. Arte também é detalhe, que não o diga Picasso, esse espertinho que deu certo.

Quem dirigiu a obra-prima “Titanic” poderia produzir coisa bem melhor que aqueles extra-terrestres verdes com rabos que vi no “Avatar”. Não me lembro se no filme os “rabudos” usavam esse apêndice como os macacos pequenos, para agarrar os galhos e não cair das árvores. Ou se o rabo funcionava apenas como requinte de originalidade. A função do rabo entre os macacos é só de segurança. Nos grandes macacos a natureza eliminou esse quinto membro, como se constata nos gorilas, orangotangos e chimpanzés.

Outra ofensa à inteligência: os “Predators”, alienígenas fortíssimos, munidos de tecnologia muito superior à nossa, portanto mais evoluídos e inteligentes — podem ficar invisíveis à vontade —, aparecem com garras imensas, próprias de mamíferos primitivos que precisam agarrar como leões ou cavar a terra como tamanduás. O “E.T.”, com todos os seus prêmios, era biologicamente incoerente porque não tinha, na cabeça, espaço suficiente para abrigar um cérebro evoluído. Era só olhos. Não é possível que numa civilização superior seus habitantes tenham um cérebro minúsculo como era o caso do “E.T.”

Outro vexame em termos de pobreza imaginativa está na insistência dos repetidíssimos “vampiros” e “lobisomens” transmitindo a “vampirice” com uma chupadinha no pescoço. E os filmes que falam em “buracos negros” sem o diretor possuir a menor idéia do que sejam? Buraco negro é uma estrela que se esgotou, virou um imenso carvão. Não é porta de entrada para uma "outra dimensão". E os “anjos” transformados em carne e osso? Esses absurdos, pelo menos, procuram transmitir idéias de bondade e altruísmo. E o que dizer das cenas em que dois sujeitos, que se odeiam, apontam reciprocamente suas armas e ficam trocando insultos e ameaças, sem que nenhum dispare? Difícil supor que isso ocorra na vida real. E como justificar, a não ser pela preguiça, a prática de o cinegrafista ficar sacudindo a câmera nas cenas de violência mais difíceis — atrapalhando a compreensão do espectador — ou quando o diretor não conseguiu construir um “monstro” mais convincente e que não seja cópia do monstro de “Aliens”?


O leitor deve estar se perguntando: — “Por que ser tão ranzinza? As pessoas querem apenas se divertir! Ninguém ignora que é tudo ficção”. É evidente que não acreditam. O que me preocupa é a formação do hábito mental da aceitação contínua do insulto à própria inteligência, a total abdicação do espírito crítico. Será que essa longa prática não deixa um certo calo de passiva estupidez, principalmente nos jovens? É interessante o contraste de reação entre a aceitação fácil de tais filmes e a maneira como a pessoa procede quando alguém insulta sua inteligência tentando enganá-la. Se um vendedor idiota insiste em convencê-la a comprar algo que só um débil mental compraria, ela reage até com indignação. Por que reação parecida não ocorre quando assiste um filme?

Finalmente, um pouco sobre o sexo cinematográfico, abusivo e de mau gosto, exibido sem solicitação e assistido por quem estiver, por acaso, na sala. Para preencher o vazio do enredo, as cenas de sexo quase explícito duram demais. Nada apenas sugerido. Tudo explicitado, inclusive no linguajar chulo relacionado com o uso da boca para fins diversos da comunicação de idéias. Descabe argumentar que basta mudar de canal. Isso presume que o pai ou a mãe da criança ou adolescente está sempre em casa, o que não é verdade.

Digo essas coisas não por intenção de moralista ultrapassado. Sou até “avançado” demais na compreensão do relacionamento entre homens e mulheres. Apenas descrevo um fato: a decadência da arte cinematográfica, principalmente a americana e daqueles países europeus que cada vez a imitam mais. Não acredito que historiadores do futuro — se houver futuro... — descreverão o cinema atual como uma época de progresso global das artes.

Assim como os governos se preocupam com a qualidade dos alimentos — colesterol, açúcar, sal uma infinidade de produtos potencialmente cancerígenos na alimentação —, seria recomendável alguma preocupação com tantos “venenos” na “nutrição mental e moral” de nossa população jovem que está chegando em massa ao campo de um “conhecimento”, cada vez mais apenas “visual” graças a uma melhoria de renda. E não tenho certeza se meninos e adolescentes, incentivados pelo triunfo financeiro dos maus e espertos saberão distinguir o que devem imitar ou evitar. Principalmente quando criminosos, jovens e charmosos, de ambos os sexos, acabam se saindo muito bem rumando, de avião, para o “Brazil” com a sacola cheia de dólares roubados.

Obviamente, não cabe ao governo proibir a indústria cinematográfica de produzir filmes de enredo idiota, difundindo ignorância ou estimulando valores escolhidos por assaltantes. Não se está sugerindo, aqui, que o governo financie filmes com essa preocupação, porque sempre existe o risco da má-fé, o governo perdendo o dinheiro e o filme nunca saindo do papel.

Em outro artigo abordarei a mediocridade em outras áreas. A sensação global é a de que vivemos em um mundo em decadência. “Coisas” bem feitas deveriam ser a regra, não a exceção. Talvez uma 3ª. Guerra Mundial, ou séria ameaça, melhore o homem, porque só assim — na base do sofrimento e do medo — é que nós, asnos de duas pernas, conseguimos aprender alguma coisa. 


(16-01-2012

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